TEXTOS

A VIDA NÃO É CHATA

RUBENS PILEGGI SÁ

Um dos debates mais relevantes da arte moderna deu-se no período em que o crítico de arte Clement Greenberg atuou, por volta dos anos de 1940 e 1950. Sua visão era de que a arte chegara finalmente em seu apogeu histórico, atingindo uma autonomia capaz de se separar do mundo à sua volta e apenas falar de suas próprias relações internas. Isto é, que a arte, particularmente a pintura, já não representava mais as coisas do mundo, mas era, ela própria, algo no mundo. Uma cor, na tela, não precisava ser explicada, em termos de semelhança, com absolutamente nada. Seu conceito de "expressionismo abstrato" para a pintura que se fazia nos EUA, levava a crer que a pintura era diferente do desenho e da escultura, porque a massa de cor não forma volumes e nem necessita de linhas para ser colocada na tela. Enfim, que sua relação com o espaço é a de se desenvolver lateralmente, já que suas relações são planares, portanto, bidimensionais.
Passado o poder de impacto que as palavras de Greenberg tiveram sobre a arte, logo começaram as revisões críticas de suas teses. A primeira era de que nem toda a arte do período era abstrata ou expressionista. A segunda, de que a arte possuía volume, sim. E ilusão de volume, também. Por mais rarefeita que seja a aplicação de uma camada de tinta sobre uma superfície, isso cria uma espessura.
A própria obra do artista Jackson Pollock – que foi sua grande referência – destruía a premissa do crítico. Além das grossas camadas de tinta, o artista deixava cair pontas de cigarros e outras coisas, que eram incorporadas à sua pintura, uma vez que as telas eram estendidas ao chão, dispensando o clássico cavalete.
Em todo caso, o que deve ser levado em consideração é a adição e a transformação da matéria sobre uma superfície e dentro de um espaço. Uma vez que o espaço é tridimensional e, mesmo uma pintura sobre vidro ou uma tela trançada ocupa um lugar dentro dele. No caso da arte, é responsabilidade do artista saber o que fazer com essas premissas, que não são apenas técnicas, mas, também, de conteúdo. Não apenas cobrir uma superfície, mas como e porque fazê-lo. Ou seja, a questão da arte também passa pela reflexão sobre o que ela está disposta a comunicar.
Pensando a vida como uma tela branca, ou uma página vazia, nossa trajetória é o que vai determinar se aquilo que fazemos tem algum valor para nós mesmos e para os outros. Um pintor pode dizer que pinta o que pinta porque gosta ou quer e não para comunicar o que sente e pensa. Pode. Mas um sistema que não comunica certamente não irá tocar as outras pessoas como cúmplices de um ato. É certo, também, que assim como a vida, a arte não é objetiva. Uma arte ensimesmada é o contrário do compartilhamento do que ela tem a oferecer. Daquilo que a torna mais rica e espiritual.
O crítico Greenberg acreditava em um mundo ideal onde a superfície fosse visível sem um suporte que a sustentasse. Onde a relação de figura e fundo fosse simplesmente abolida. Mas isso só pode existir mentalmente, em um espaço sem lugar.
Cabe-nos a responsabilidade sobre aquilo que adicionamos ao mundo. A esse nosso mundinho já superlotado de objetos descartáveis e inúteis. De poluição e destruição.
Somos livres para fazer o que quiser de nossas existências. Livres para pintar ou plantar. Mas devemos lembrar, sempre, que a liberdade exige responsabilidade para com os nossos atos e que a devemos usar para afirmar a vida e não para negá-la ou para impor aos outros o que achamos que a vida tem de ser.


CONSELHOS DOS MESTRES


Amemos aos mestres que nos precederam.

Inclinemo-nos diante de Fídias e de Miguel Ângelo. Admiremos a serenidade de um,e a feroz angústia do outro. A admiração é um vinho generoso para os espíritos nobres.
Entretanto, preservemo-nos de imita- los. Respeitosos da tradição devemos saber discernir o que ela encerra de eternamente fecundo: duas paixões dos gênios são o amor à Natureza e a sinceridade. Todos adoraram a Natureza e nunca mentiram. Deste modo, a tradição vos estende a chave graças a qual podereis evadir-vos da rotina. É a própria tradição que vos recomenda interrogar incessantemente a realidade e que vos proíbe de vos submeter cegamente a qualquer mestre.
Que a Natureza seja vossa única deusa. Nela depositai uma fé absoluta. Estai certos de que ela nunca é feia e limitai vossa ambição a lhe ser fiéis.
Tudo é belo para o artista, pois em todo ser e em toda coisa, seu olhar penetrante descobre o caráter, isto é, a verdade interior que transparece sob a forma. E essa verdade é a própria beleza. Estudai religiosamente - não podereis deixar de encontrar a beleza, porque nela encontrareis a verdade.
Trabalhai obstinadamente.
Estatuários, fortificai em vós o sentido da profundidade. O espírito dificilmente se familiariza com essa noção. Ele só representa distintamente superfícies, sendo-lhe difícil imaginar formas em espessura. Aí está, portanto, a vossa tarefa.
Antes de tudo, estabelecei nitidamente os grande planos das figuras que esculpis. Acentuai vigorosamente a orientação que dais a cada parte do corpo, à cabeça, aos ombros, à bacia e às pernas. A arte exige decisão. É pela fuga bem acentuada das linhas que mergulhais no espaço e que vos apoderais da profundidade. Quando vossos planos se fixarem, está tudo descoberto. Vossa estátua já vive. Os detalhes nascem e em, seguida, ordenam-se por si mesmos.
Enquanto modelais, não penseis jamais em superfície, mas em relevo.
Que vosso espírito conceba toda a superfície como a extremidade de um volume que a empurra para trás. Imaginai as formas como se estivessem apontadas para vós. Toda vida surge de um centro, depois germina e desabrocha de dentro para fora. Do mesmo modo, na boa escultura, adivinha-se sempre um poderoso impulso interior. É o segredo da arte clássica.
Vós, pintores, observai, da mesma forma, o real em profundidade. Olhai, por exemplo, um retrato pintado por Rafael. Quando esse mestre representa um personagem de frente, ele faz o peito fugir obliquamente e é assim que dá a ilusão da terceira dimensão.
Lembrai-vos disso: não há traços, só há volumes. Quando desenhais, nunca vos preocupeis com o contorno, mas com o relevo. É o relevo que rege o contorno.
Exercitai-vos sem descanso. É preciso acostumar-vos à profissão.
A arte não é senão sentimento. Mas sem a ciência dos volumes, das proporções, das cores, sem a destreza da mão, o sentimento mais vivo paralisa-se. O que aconteceria com o maior poeta em um país estrangeiro cuja língua ele ignorasse? Na nova geração de artistas há um grande número de poetas que, infelizmente, se recusa a aprender a falar. Por isso, não fazem mais que balbuciar.
Paciência! Não conteis com a imaginação. Ela não existe. As únicas qualidades do artista são: sabedoria, atenção, sinceridade e vontade. Cumpri vossa tarefa como operários honestos.
Jovens, sede verdadeiros. Isto, porém, não significa: sede banalmente exatos. Há uma exatidão elementar - a da fotografia e do modelado. A arte só principia com a verdade interior. Que todas as suas formas, todas as suas cores traduzam sentimentos. O artista que se contenta com o trompe-l'oeil, e que reproduz servilmente detalhes sem valor, nunca será um mestre. Se visitastes algum campo santo da Itália, provavelmente observastes a puerilidade com que os artistas encarregados de decorar os túmulos limitam-se a copiar, em suas estátuas, os bordados, as rendas, as tranças de cabelo. Não são verdadeiros, já que não se dirigem à alma.
Quase todos os nosso escultores lembram os dos cemitérios italianos. Os monumentos de nossas praças públicas, distinguimos apenas sobrecasacas, mesas, veladores, cadeiras, máquinas, globos e telégrafos. Nada de verdade interior, logo, nada de arte. Desprezai esses trastes.
Sede profundamente, ferozmente verídicos. Nunca hesiteis em expressar o que sentis, mesmo quando vos opuserdes às idéias prontas. Talvez não sejais logo compreendidos. Mas vosso isolamento terá curta duração. Amigos logo virão procurar-vos - pois o que é profundamente verdadeiro para um homem, o é para todos. Contudo, nada de caretas ou contorções para atrair o público - simplicidade, singeleza!
Os temas mais belos encontram-se diante de vós: são os que conheceis melhor.
Meu caríssimo e extraordinário Eugène Carrière, que tão cedo nos deixou, deu mostras de gênio ao pintar sua mulher e seus filhos. Bastou-lhe celebrar o amor maternal para ser sublime. Os mestres são os que olham com seus próprios olhos o que todos viram e que sabem perceber a beleza do que é demasiado comum para os outro espíritos.
Os maus artistas vêem sempre com os olhos de outrem.
O essencial é emocionar-se, amar esperar, vibrar, viver. Ser homem antes de ser artista! A verdadeira eloquência zomba da arte. Retomo, aqui, o exemplo de Carrière. Nas exposições, a maior parte dos quadros é apenas pintura - os dele, no meio dos outros, pareciam janelas abertas para a vida!
Acolhei as críticas justas. Ireis facilmente reconhecê-las. São aquelas que vos confirmarão uma dúvida que já vos assalta. Não vos deixeis atingir por aqueles que vossa consciência não admite.
Não temais as críticas injustas. Elas revoltarão os vossos amigos, forçando-os a refletir a simpatia que têm por vós e que manifestarão com mais segurança quando dela melhor discernirem os motivos.
Se vosso talento é novo, só contareis no primeiro momento com poucos partidários e tereis uma quantidade de inimigos. Não vos desencorajeis. Os primeiros triunfarão - pois eles sabem porque vos amam - os outros ignoram porque vós lhes sois odiosos. Os primeiros são apaixonados pela verdade para a qual recrutam, incessantemente, novos adeptos - os outros não testemunham qualquer zelo duradouro por sua opinião falsa. Os primeiros são tenazes, os outros vão aos sabor dos ventos. A vitória da verdade é certa.
Não percais vosso tempo a estabelecer relações mundanas ou políticas. Vereis muitos dos vossos confrades chegarem às honrarias e à fortuna pela intriga - não são verdadeiros artistas. Alguns são, no entanto, muito inteligentes e se os empenhardes a lutar com esses pseudo-artistas em seu território, ireis consumir tanto tempo quanto eles, isto é, toda a vossa existência: não vos sobrará, portanto, mais um minuto para ser artista.
Amai apaixonadamente vossa missão. Mais bela não há; é muito mais elevada do que o vulgo possa crer.
O artista dá um grande exemplo. Ele adora o seu ofício - sua mais preciosa recompensa é o prazer de trabalhar bem. Atualmente, que tristeza! Os operários são persuadidos, para a sua infelicidade, a odiar seu trabalho e a sabotá-lo. O mundo só será feliz quando todos os homens tiverem almas de artistas, quer dizer, quando todos encontrarem prazer em sua tarefa.
A arte é, ainda, uma magnífica lição de sinceridade.
O verdadeiro artista expressa sempre o que pensa com o risco de sacudir todos os preconceitos estabelecidos.
Ele ensina, assim, a franqueza aos seus semelhantes.
Ora, imaginemos que maravilhosos progressos se realizariam repentinamente se a verdade absoluta reinasse entre os homens.
Ah! Com que presteza a sociedade se livraria dos erros e deformidades que tivesse confessado.
E com que rapidez nossa terra se tornaria um Paraíso!

AUGUSTE RODIN